‘Doutora, não me deixa morrer, meu filho precisa de mim’: o drama das UPAs
“Doutora, não me deixa morrer, meu filho precisa de mim”; “doutora, estou com dor, mas minha dor é na alma”; “nas últimas semanas cheguei chorando em casa todos os dias. Vi gente caindo morta no chão na minha frente”. As frases, de duas médicas que trabalham na linha de frente contra a Covid-19 em Belo Horizonte, demonstram a exaustão de profissionais da saúde que fazem o possível – e tentam até o impossível – para atender os doentes nas nove Unidades de Pronto Atendimento (UPA) de Belo Horizonte. Lotadas, algumas das unidades de saúde viraram ‘hospitais sem recursos’, nas palavras de uma delas.
A médica generalista e nutricionista Tatiana Araújo, de 43 anos, que trabalha na linha de frente no combate à Covid-19 em uma UPA na região Noroeste de Belo Horizonte, atendeu ao telefonema da reportagem no final de seu plantão no último 31 de março. Ela relatou como, nas últimas semanas, a situação na instituição onde trabalha vem piorando. “A agressividade do vírus está muito diferente. Os pacientes estão evoluindo com uma gravidade muito maior do que inicialmente. Temos demanda de invasão (intubação) maior nos pacientes. Estamos bem apreensivos”, relata a profissional de saúde. E acrescenta: “Meu último plantão foi bem caótico. Não deixamos de ver o lado humano da questão. Os pacientes estão bem fragilizados, mexe muito com a gente”.
Tatiana enxergou a mudança no quadro sanitário da capital de maneira abrupta. Até a terceira semana de março, a profissional da saúde estava de férias e, quando retornou ao trabalho, percebeu que os pacientes que havia “deixado” estavam sofrendo com estágios muito mais graves da Covid-19. “Quando voltei, 90% estavam ‘pronados’ (quando é preciso deixar o paciente deitado com a barriga para baixo para facilitar a troca de gases que ocorre no pulmão). Pediam uma quantidade de oxigênio máxima, e não temos tubos suficientes para todo mundo”, narra.
A situação é recorrente nas UPAs de Belo Horizonte dado o esgotamento do sistema hospitalar. Médicos ouvidos pela reportagem relatam superlotação das unidades de saúde, exaustão dos profissionais e falta de insumos para tratamento adequado dos pacientes. Desenvolvidas como um intermediário entre a atenção básica e estruturas mais robustas de saúde, as UPAs acabam por suprir a demanda de hospitalizações com o esgotamento de grande parte dos leitos disponíveis em hospitais.
Durante 11 dias, o sistema de saúde de Belo Horizonte esteve em colapso absoluto, com taxas de ocupação de UTIs que ultrapassavam os 100%. Filas de espera nos hospitais e postos de atendimento atingiram tanto figurões da política mineira quanto pessoas de baixa renda, que, por diversas vezes, foram alocadas em situações longe das ideais para tratamento da doença.
Em uma das cenas mais dramáticas da pandemia em Belo Horizonte, dois corpos de vítimas da Covid-19, enrolados em cobertores, foram deixados defronte à portaria da UPA Venda Nova. Supostamente, o despacho incorreto ocorrera por falta de equipamentos – o que foi negado pela prefeitura da capital no dia do evento. Coisa parecida ocorreu na UPA Pampulha, no bairro Santa Terezinha, no último dia 1, quando três corpos foram alocados na portaria da unidade por falta de espaço no necrotério.
No extremo oposto de Belo Horizonte, na UPA Barreiro, na região homônima, pacientes chegaram a esperar por mais de 20 horas por atendimento médico. Além disso, a superlotação da unidade, de acordo com a médica generalista Paula Dias, de 25 anos, que atende na linha de frente da Covid-19, faz com que casos leves e moderados da doença sequer sejam tratados no local.
“Nas últimas semanas, as coisas pioraram muito. Quando começaram a faltar leitos, sentimos muito (a pressão). Não temos muitos exames, muita medicação. A (UPA) deveria ser um lugar de passagem até o hospital. Como os hospitais fecharam por conta da ocupação, os pacientes ficaram na UPA. Até em fevereiro, sempre esteve muito cheia, mas ainda conseguíamos trabalhar. Em março, a coisa piorou muito, em um nível absurdo”, relata.
A principal mudança, explica Paula, ocorreu após o Carnaval deste ano – algo que, segundo ela, se repete toda vez que há algum feriado na cidade. “Logo depois de feriados os casos aumentam muito. Começou a chegar muito caso grave. Chegou num ponto que não conseguíamos atender os casos leves. Ficávamos 12 horas no plantão atendendo casos graves somente. Como os hospitais estão cheios, não estavam conseguindo liberar as vagas. Enche a UPA, que vira um hospital sem recursos, sem condição, sem nada”.
A médica conta que não há sequer banheiros suficientes na unidade de saúde para que todos os pacientes locados tomem banho. “Teve gente que pediu pelo amor de Deus, com três dias sem tomar banho. Não tem lugar. O banheiro é pequeno. Às vezes são pacientes que estão precisando muito de oxigênio, que precisam de atendimento próximo e constante. Chegou ao ponto de que um paciente morreu por falta de oxigênio. Os pacientes não podem fazer xixi, não têm profissionais que os leve, não tem cama para dormir, ficam o dia inteiro em cadeiras. Teve um dia que havia 20 pacientes internados, mas só temos cerca de dez cadeiras de ‘semi-leito’”, detalha.
Colapso do sistema hospitalar
No primeiro plantão após o retorno das férias, Tatiana ouviu diversos anseios trágicos dos infectados por coronavírus. “Doutora, não me deixa morrer, meu filho precisa de mim”, “doutora, estou com dor, mas minha dor é na alma”, foram algumas delas.
“Eu sou mãe, e ouvir isso faz a mãe que mora em mim gritar. Vivemos em um momento em que a pandemia foi muito politizada. É uma falta de respeito, não só dos líderes, mas também das próprias pessoas. Elas recebem a orientação de se isolarem, mas se aglomeram”, desabafa a profissional de saúde.
“Aquele plantão me fez questionar a minha escolha pela medicina, mas a medicina é muito maior. A pandemia nos liga diretamente com a dor das pessoas. A situação está caótica”, afirma a médica. O caos que se instaurou nas unidades de saúde da cidade veio acompanhado de uma importante mudança na demografia da Covid-19. Antes primordialmente danosa às pessoas mais velhas e debilitadas, agora a doença atinge, cada vez mais, pessoas jovens e saudáveis. A situação foi relatada por todos os entrevistados, e confirmada pelo infectologista do Comitê de Enfrentamento à pandemia da prefeitura de BH, Estevão Urbano.
“As pessoas adoecem mais, são cada vez mais jovens, o que, inclusive, aumenta a taxa de mortalidade e aumenta a estadia nas UTIs. A média de número de dias é muito maior, passou de algo entre 12 dias e 13 dias no final de 2020, para 20 dias de internação em 2021. Não é uma percepção, é estatística. Embora a transmissão seja maior, as medidas de controle são as mesmas. Temos um vírus que é mais agressivo, por causa das novas cepas, que mata mais, mas a terapia ainda é a mesma. O vírus evoluiu mais rápido que o tratamento”, comenta.