Detetives matemáticos investigam fraudes na loteria
Embora todo mundo acabe jogando, no fundo sabemos que é muito pouco provável ganhar na loteria. No sorteio especial de Natal da Espanha, por exemplo, a chance de ganhar comprando apenas um bilhete é de apenas 1 em 100.000 (já na Mega-Sena, a principal loteria brasileira, a chance de ganhar o prêmio principal com uma única aposta é de 1 em 50 milhões). Como explicava o matemático Florin Diacu, da Universidade de Victoria (Canadá), em um artigo no EL PAÍS, é muito mais provável ser atropelado por um carro. Comprando mais bilhetes, as possibilidades de ganhar obviamente crescem, mas esse aumento da probabilidade de ser sorteado é mais lento que o investimento necessário. Ou seja, é muito caro comprar a sorte.
Mais raro ainda é ganhar duas vezes na loteria. Casos como o do falecido ex-deputado federal baiano João Alves, que em 1993 justificou seu acelerado enriquecimento alegando ter ganhado 221 vezes na loteria, são pouco prováveis. Para ser premiado tantas vezes, é preciso jogar muito — mas muito, muito mesmo. Em 2014, um grupo de estatísticos e probabilistas norte-americanos, junto com um jornalista investigativo, determinou uma cota mínima do gasto do jogador usando técnicas matemáticas da chamada pesquisa operacional, com o objetivo de identificar fraudes no jogo. Distinguiram dois tipos de sorte: a “plausível” e a “implausível”.
Estudaram concretamente os casos de 10 pessoas que diziam ter ganhado em mais de 80 ocasiões prêmios superiores a 600 dólares (cerca de 2.000 reais) na Loteria da Flórida (EUA) —só prêmios acima desse valor ficam registrados. O apostador que mais prêmios acumulava dizia ter sido sorteado 252 vezes, somando um total de 719.000 dólares (2,4 milhões de reais, pelo câmbio atual). Naturalmente a situação era chamativa, mas os pesquisadores buscavam uma prova matemática que confirmasse as suspeitas, porque em principio até os fatos mais estranhos, como o do deputado brasileiro, podem acontecer.
“O fato de alguém afirmar que ganhou vários prêmios sucessivos não necessariamente precisa ser mentira”, dizem os estatísticos no artigo. É possível que essas pessoas estejam gastando muito dinheiro em loteria e tendo um pouco de sorte. Na verdade, essa é a ilusão que os sorteios vendem: com um só bilhete você pode ficar multimilionário.
Geralmente, porém, não é assim. Para identificar matematicamente o crime, em primeiro lugar os estudiosos se perguntaram: durante quanto tempo um jogador pode continuar ganhando? Isto se relaciona com a chamada expectativa matemática, que é dada por uma fórmula que depende da probabilidade do jogo. Por exemplo, se numa rifa de 200 números cada bilhete custa 3 reais, e o prêmio é uma bicicleta avaliada em 300 reais, a expectativa de cada bilhete é de 1,5. Não é um valor que se possa obter (porque cada rifa só pode render 0 ou 300), e sim a média dos valores de todos os bilhetes. Além disso, é uma pista do que acontecerá se você jogar durante muito tempo no mesmo tipo de sorteio. Quando a expectativa do valor do bilhete (o ganho médio menos o preço da aposta) é negativa, como costuma acontecer em quase todos os sorteios, o jogador acabará perdendo dinheiro.
No estudo da Loteria da Flórida, os pesquisadores aplicavam esta expectativa, com a lei dos grandes números, para afirmar que, com total probabilidade, cedo ou tarde o jogador ficará sem dinheiro. Mas quanto poderá jogar até perder tudo? Supondo que disponha de uma soma inicial X e sempre compre bilhetes da mesma loteria, reinvestindo seus lucros no jogo, os matemáticos propuseram uma fórmula para determinar o número de prêmios que poderiam ser ganhos antes de perder o dinheiro inicial, em relação à probabilidade de ganhar no jogo, e outras variáveis.
Mas esta fórmula por si só não vale para ter certeza estatística da fraude. Com essa informação os autores estudavam, sobre o número total de apostas, qual seria a quantia mínima que o apostador suspeito deveria despender para que, se todos os residentes da Flórida gastassem o mesmo tanto, as chances de que alguém pudesse ganhar o mesmo número de vezes que o jogador em questão fossem ainda inferiores a uma em um milhão. Se esse valor for muito grande em comparação aos meios que o jogador dispõe, então existe evidência estatística de fraude. Concluíram que dois dos dez suspeitos poderiam simplesmente ter tido sorte, mas os demais estavam mentindo. A investigação matemática casou à perfeição com a investigação criminal que se desenrolou depois.
“O tipo de coincidência identificada no artigo foi analisada por detetives, mostrando que essa gente estava de fato cometendo crimes”, afirma Skip Garibaldi, professor titular do Departamento de Matemática da Universidade Emory e diretor-associado do Instituto de Matemática Pura e Aplicada da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Esse delito consiste em comprar bilhetes de loteria já premiados, por um valor um pouco superior à premiação oficial, num método habitual para lavagem de dinheiro obtido ilicitamente.
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